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A Primeira Via: Prova da Existência de Deus a partir do Movimento

I. Introdução geral às cinco vias

Santo Tomás, ao tratar da existência de Deus na Summa Theologiae, I, q. 2, a. 3, propõe cinco vias (quinque viae) como caminhos a posteriori que partem dos efeitos sensíveis do mundo para chegar à conclusão da existência de um primeiro princípio, pessoal e inteligente, a que todos chamam Deus (Deum omnes dicunt).

A primeira via é, talvez, a mais fundamental e paradigmática, pois:

  • Se baseia na experiência sensível universal e imediata;
  • Depende de princípios metafísicos primeiros (ato e potência);
  • Fundamenta analogicamente as demais vias.
"A Criação do Mundo", quadro de Ivan Aivarovsky


II. Enunciado da primeira via (texto original)

Prima via est sumpta ex parte motus. Certum est enim, et sensu constat, aliqua moveri in hoc mundo. Omne autem quod movetur, ab alio movetur... Ergo est aliquid movens non motum; et hoc dicunt omnes Deum.
(STh, I, q. 2, a. 3)

Traduzindo:

A primeira via se toma do movimento. É certo, e evidente aos sentidos, que há movimento no mundo. Ora, tudo o que é movido é movido por outro. Mas não se pode ir ao infinito em uma série de motores movidos. Logo, é necessário chegar a algo que move, mas que não é movido por outro. E isto todos chamam Deus.


III. Elementos conceituais da via do movimento

1. Movimento (motus):

Na linguagem aristotélica e tomista, movimento não é apenas deslocamento espacial, mas toda e qualquer atualização de potência em ato, ou seja, a passagem de um ente da potência ao ato (ex potentia ad actum). Em outras palavras, a noção de movimento diz respeito a toda e qualquer mudança que se observa nas coisas, incluindo a mudança local, mas não se limitando a ela.

Motus est actus entis in potentia, inquantum huiusmodi.
(Aristóteles, Física, III, 1)

Assim:

  • Quando a água esfria, passa de “poder estar fria” a “estar fria”;
  • Quando a madeira é queimada, passa da potência de ser cinzas ao ato de ser cinzas.
  • Quando uma semente germina, passa de potência vegetal a ato de ser árvore;
  • Quando um corpo se move no espaço, passa de um lugar potencial a um lugar atual.
  • Quando um aluno aprende matemática de seu professor, passa da potência de conhecê-la ao ato de conhecê-la.

2. Ato e Potência:

  • Ato (actus): o que é plenamente, seja por si mesmo, seja por acidente. Exemplos: a) A existência concreta de algo, como um pedaço de madeira que tenho em minhas mãos; b) Atributos ou perfeições que já estão presentes em um determinado sujeito, como a brancura de uma parede.
  • Potência (potentia): a capacidade real de ser algo que ainda não se é. Exemplos: a) A madeira que está em potência para se tornar cinzas, se queimada; b) Parede branca que está em potência para se tornar azul, vermelha ou qualquer outra cor.

“Potentia non potest se ipsam reducere in actum.”
(STh, I, q. 2, a. 3)

3. Motor (movens):

Um ente em potência não pode atualizar-se por si; exige um outro ente em ato que o mova, e a este ente, sob este aspecto, chamamos motor.

O motor é, portanto, o agente que atualiza a potência de outro. Pode ser ele mesmo movido (motor movido), ou não (motor imóvel).

O ente motor ou movente é, então, causa. Quanto ao movimento, este é, no ente movido, efeito desta causa.

Donde se conclui que o efeito é sempre menor que a causa, e que a causa possui este efeito de modo mais eminente.


IV. Estrutura lógica da prova

1. Premissa empírica:

Há movimento no mundo. (certum est, et sensu constat; é algo certo e os sentidos nos comprovam)

A experiência sensível nos mostra que as coisas mudam: corpos se movem, qualidades variam, seres nascem e morrem.

2. Princípio metafísico:

Tudo o que se move, e que não tem em si a causa do próprio movimento, é movido por outro.

Por quê? Porque:

  • Nada pode estar em ato e potência ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto;
  • O que está em potência só pode passar ao ato por um ser já em ato;
  • Logo, todo movimento exige uma causa exterior.

3. Regressão causal:

O que move algo está, por sua vez, sendo movido por outro, e assim sucessivamente.

4. Impossibilidade de regressão infinita em motores moventes per se:

  • Uma série infinita de motores movidos per se não tem um motor em ato atual que sustente a cadeia;
  • Mas sem um primeiro motor atual, nada se moveria agora;
  • Mas as coisas se movem;
  • Logo, deve haver um primeiro motor imóvel, que move sem ser movido por outro.

5. Conclusão:

Existe um primeiro motor imóvel, a quem todos chamam Deus.


V. Esquema silogístico formal

  • Maior: Tudo o que é movido, é movido por outro;
  • Menor: Há coisas que se movem;
  • Impossível uma regressão infinita de motores movidos per se;
  • Conclusão: Existe um primeiro motor não movido por outro — Deus.

VI. Fundamentos metafísicos indispensáveis

1. Princípio de não contradição:

Nada pode estar em potência e ato ao mesmo tempo no mesmo aspecto.

2. Princípio de causalidade:

Todo ente que passa da potência ao ato exige uma causa atual.

3. Hierarquia de causas subordinadas per se:

Em uma série causal per se (ex: A mão, que move o bastão, que move uma pedra), a atualidade do efeito depende da atualidade do primeiro motor. Sem ele, o movimento cessa.


VII. A natureza do primeiro motor imóvel

Deve-se agora considerar as propriedades do ser que move sem ser movido:

  1. Imóvel: pois não tem nenhuma potência a ser atualizada;
  2. Ato puro: sem potência, sem mudança, sem limitação;
  3. Simplicíssimo: sem composição de ato e potência, ser e essência.
  4. Imaterial: Pois toda matéria é potência; É impossível que entre na composição de um ente que é puro ato, desprovido de qualquer potência.
  5. Eterno: O tempo é a medida do movimento segundo um antes e um depois. Mas o ato puro é imóvel, não sendo, portanto, preso ao tempo e não tendo começo nem fim, mas sendo, por outro lado, princípio e fim de todas as coisas.
  6. Necessário por si: não depende de outro para ser, pois, se dependesse, este outro seria o primeiro motor imóvel.
  7. Causa de todo movimento: é causa primeira e universal.
  8. Sumamente inteligente: Sendo causa última do movimento de todas as inteligências, possui necessariamente a inteligência em grau sumo e infinito, pois, se a causa é sempre maior que o efeito, necessariamente é inteligentíssimo aquele que causa o movimento de todos os intelectos.
  9. Age de forma livre: Sendo causa última do movimento de todas as vontades, que são livres, possui, necessariamente a vontade em grau sumo e infinito, pois, se a causa é sempre maior que o efeito, necessariamente é livre aquele que causa o livre arbítrio de todas as vontades.

Este ente é o que, por analogia, chamamos Deus.


VIII. Diferenças em relação à ciência moderna

  • A primeira via não depende da física moderna, mas de princípios metafísicos;
  • O conceito de “movimento” em Aristóteles e Tomás não é cinemático, mas ontológico;
  • Mesmo que a física mude seus modelos, a realidade da mudança e a necessidade de um princípio atual permanece inquestionável.

IX. Conclusão

A primeira via de Santo Tomás é uma demonstração metafísica rigorosa:

  • Parte de um dado da experiência (o movimento);
  • Utiliza princípios necessários da razão (ato e potência, causalidade, não-contradição);
  • Conclui pela existência de um ser necessário, ato puro, não movido, que move todos os demais;
  • Este ser, por suas propriedades, é Deus.

“Ergo est aliquid movens non motum; et hoc dicunt omnes Deum.”
(STh, I, q. 2, a. 3)

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