Introdução
Santo Tomás de Aquino (1225–1274) revolucionou a metafísica ao distinguir nitidamente entre essentia (essência) e esse (ato de ser). Um de seus conceitos centrais é “esse ut actus essendi”, que significa literalmente “ser enquanto ato de ser”. Em outras palavras, esse designa o ato ou perfeição que atualiza uma essência. Ao longo deste artigo, exploraremos detalhadamente esse conceito tomista, esclarecendo o significado de esse como ato de ser, sua relação com a essência, o papel do esse na constituição do ente, sua dependência em relação a Deus (concebido como Ipsum Esse per se Subsistens, o Ser Subsistente por Si mesmo) e as implicações dessa distinção para a metafísica tomista e a teologia católica. Também destacaremos as referências às obras do Doutor Angélico onde tais ideias se desenvolvem, bem como os fundamentos aristotélicos e neoplatônicos que as influenciaram.O Significado de esse como Ato de Ser
No pensamento de Santo Tomás de Aquino, esse refere-se ao ato de ser de algo. Diferentemente do verbo “ser” no uso comum, esse em sentido metafísico não é apenas um verbo, mas sim uma atualidade ontológica, o princípio pelo qual uma coisa existe de fato.Aquilo que chamamos de ente (do latim ens, “o que é”) possui dois aspectos, um potencial e outro atual:
- quidditas/essentia: o princípio pelo qual uma coisa é aquilo que ela é;
- esse: O ato ou perfeição pelo qual a essência se torna realidade.
O esse é assim o componente mais fundamental de qualquer ente, pois é o que confere realidade à essência. Tomás afirma que “ipsum esse est perfectissimum omnium, comparatur enim ad omnia ut actus”, isto é, “o próprio ser é a mais perfeita de todas as coisas, comparando-se a todas como ato” (Summa Theologica). Nada possui atualidade a não ser na medida em que é; por isso, o esse é chamado por S. Tomás de atualidade de todas as coisas – inclusive das próprias formas ou essências (Summa Theologica). Em suma, esse é o ato pelo qual qualquer coisa passa do mero possível ao real, o “ato de ser” que fundamenta toda realidade concreta.
Essência (essentia) e Ser (esse): Distinção e Relação
Santo Tomás nos ensina que há uma distinção real entre a essência de um ente (aquilo que ele é) e o seu Ser (o ato pelo qual ele é). A essência corresponde à natureza ou quididade da coisa – por exemplo, a essência humana é “animal racional”. Já o esse é o ato pelo qual o ente existe aqui e agora.Nos entes finitos e criados, essência e esse não são idênticos: a essência é algo que possui ser, mas não é o próprio Ser. Podemos compreender o que uma coisa é (essência) sem saber se ela existe de fato – por exemplo, entende-se o que é um “hipogrifo” pela essência descrita, mas isso não garante que tal essência exista na realidade, atualizada em um ente.
Essa consideração levou Santo Tomás a concluir que, nos seres criados, essência e Ser são princípios distintos: a essência por si só não confere o Ser. A essência é princípio de inteligibilidade (“o que a coisa é”), enquanto o esse é o princípio de atualização (“pelo qual a coisa é”).
Santo Tomás adota aqui uma terminologia inspirada em Boécio, distinguindo: quod est (“aquilo que é”, ou seja, o ente considerado em sua essência) de quo est (“aquilo pelo qual é”, ou seja, o ato de ser). Assim, quod est aponta para a essência, e quo est para o esse ou ato de ser.
Essa distinção tem caráter metafísico real em criaturas: a essência de um cavalo, de uma árvore ou de um anjo não inclui necessariamente o Ser; cada um desses entes precisa receber o ato de ser para existir de fato. A essência, nessa perspectiva, funciona como uma potencialidade em relação ao esse: ela define o que algo pode ser, enquanto o esse realiza essa potência, fazendo com que a essência “passe a ser” um ente real.
Em termos tomistas, a essência está em potência para o ato de ser, e o esse é o ato final que atualiza essa potência. Isso explica por que todo ente criado é composto de essência e Ser, embora não se trate de uma composição física, mas sim metafísica.
É essa composição (essentia + esse) que explica a limitação e contingência dos entes criados, distinguindo-os de Deus. Com efeito, “nada além de Deus tem essência idêntica ao ser”, diz Tomás; Por outro lado, em toda criatura, essência e Ser diferem (Summa Theologica).
O papel do esse na constituição do ente
O esse desempenha o papel de ato constitutivo do ente. Se perguntarmos “o que faz com que uma coisa seja um ente?”, a resposta em termos tomistas é: seu esse. A essência, por mais que especifique o que a coisa é (sua forma ou natureza), não basta para fazê-la existir.Antes da conjunção com o ato de ser, a essência tem apenas um ser “possível” ou conceitual. Por exemplo, a essência “triângulo” existe na mente, em potência para existir, mas só um triângulo concreto desenhado no papel ou materializado possui esse (ato de existir).
Portanto, o esse é o princípio atualizador: assim como a forma substancial atualiza a matéria para originar um ente material, o ato de ser atualiza a própria essência (forma) para originar um ente existente na realidade.
Santo Tomás chega a dizer que “o ser mesmo é ato até mesmo em relação à forma”, ou seja, ainda que a forma dê ser substancial a algo, é o esse que atualiza por completo a substância, sendo o ato final de toda coisa. Daí a famosa expressão atribuída à escola tomista de que o esse é “actus actuum” (atualidade de todos os atos) e “perfection omnium perfectionum” (perfeição de todas as perfeições), enfatizando que o Ser é a atualização máxima de qualquer realidade.
Em suma, a constituição de qualquer ente concreto exige a união de dois princípios metafísicos:
- a essência, que determina o que a coisa é, e:
- o esse, que a faz ser de fato. Sem o esse, a essência seria apenas uma ideia ou possibilidade; com o esse, ela se torna um ente real.
É importante notar que, embora todo ente criado tenha essência e ser, essas não são “duas coisas” separadas, mas dois princípios co-principiantes de um mesmo ente. Como esclarece uma interpretação tomista contemporânea, Tomás não “coisifica” o ser, mas entende que essência e esse são dois princípios que compõem o ente, e não dois entes por si mesmos (1).
Em outras palavras, não devemos imaginar o ser ou actus essendi como uma entidade autônoma que se “anexa” à essência, mas sim como um ato que configura a própria realidade da essência enquanto ente. Essa visão evita confusões e ressalta a unidade do ente: o ente concreto é (uno) justamente por essa composição íntima de quididade e ser.
A distinção é real, mas a unidade do composto é garantida pela ordenação da essência ao ato de ser.
Deus como Ipsum Esse Per Se Subsistens
A distinção entre essentia e esse nos seres finitos faz sobressair uma conclusão teológica fundamental em Tomás: a existência de um Ser supremo em que essência e ser coincidem plenamente.Esse Ser é Deus, o Ipsum Esse Per Se Subsistens, expressão latina que significa “o próprio Ato de Ser subsistente por Si mesmo”. Em Deus, a essência divina é o esse, e o esse é a essência divina.
Tomás afirma explicitamente: “Deus est ipsum esse per se subsistens” (Summa Theologica). Isto implica que Deus não apenas tem ser; Ele é o próprio ser em si mesmo. Por ser o ipse esse subsistente, Deus contém em Si a plenitude do ser – “toda a perfeição do ser” está Nele, nada Lhe falta do ponto de vista do ser (Summa Theologica).
Consequentemente, Deus é actus purus, Ato Puro, sem nenhuma potencialidade não realizada, pois se houvesse distinção real de essência e ser em Deus, Ele seria composto e dependeria de um ato de ser recebido, o que é impossível no Primeiro Ser necessário.
Essa compreensão metafísica de Deus reforça a doutrina clássica da simplicidade divina: em Deus não há partes, nem composição; atributos como bondade, sabedoria, onipotência – e o próprio ser – se identificam com a própria essência simples de Deus.
Ipsum Esse per se Subsistens é também a chave para entender Deus como a causa do ser de todas as criaturas. Se somente Deus é Ser por essência, então todo outro ente só pode existir por participação no Ser divino.
Tomás descreve a criação exatamente nesses termos: criatura é aquela cuja essência “participa” do ato de ser, recebendo-o de outro. Deus, sendo o único cujo esse é próprio e ilimitado, é a fonte que outorga esse a tudo mais.
Por isso, no pensamento tomista, criar significa produzir o esse das coisas ex nihilo, ou seja, a partir do nada (St. Thomas Aquinas on God as Ipsum Esse Subsistens). Cada ente criado tem esse por dependência – em última instância, uma dependência contínua de Deus que conserva as coisas no ser.
Como resume Tomás, tudo o que existe “é ente” na medida em que possui esse dado por Deus, que é o princípio primeiro e universal de todo ser (Summa Theologica). Esta visão de Deus como Ser Subsistente ilumina também o entendimento teológico do nome revelado a Moisés – “Eu Sou Aquele que Sou” (Ex 3,14) – que Tomás interpreta como Deus se identificando com o Ser por excelência, Qui Est (Aquele que é) (Summa Theologica).
Em suma, a dependência do esse em relação a Deus é absoluta: Deus é o único Ser por Si (Ens per se), enquanto as criaturas são entes por participação, recebendo dele o ato de ser.
Impactos na Metafísica Tomista e na Teologia
A distinção real entre essência e esse estabelecida por Tomás de Aquino tem amplas repercussões. Na metafísica tomista, o ser passa a ser considerado a atualidade fundamental e o foco último da análise do ente, superando visões puramente essencialistas.Isso permite a Tomás elaborar uma hierarquia do ser em que os entes se diferenciam não apenas pelas suas essências, mas sobretudo pelo “grau” ou modo de participação no esse.
Surge daí a doutrina da analogia do ente: “ens” (ente) não é predicado de modo unívoco a Deus e às criaturas, mas analogicamente. Deus é Ser por sua própria natureza, enquanto as criaturas são seres por derivação – o conceito de ser se aplica a ambos em proporção análoga, não idêntica. Essa analogia preserva a transcendência divina ao mesmo tempo em que admite que tudo o que existe reflete, em algum grau, o Ser primeiro.
Muitos estudiosos consideram a noção de esse como ato de ser o núcleo da metafísica tomista. O filósofo Étienne Gilson chegou a denominar o pensamento de Santo como uma “filosofia do ser”, sublinhando que o actus essendi é o princípio explicativo por excelência em sua ontologia.
Outros autores afirmam que a ideia de Deus como Ipsum Esse per se Subsistens é “a chave de toda a metafísica” tomista (St. Thomas Aquinas on God as Ipsum Esse Subsistens), pois a partir dela compreende-se tanto a estrutura de todo ente finito (marcado pela composição e participação no ser) quanto a natureza do Primeiro Ser. Essa perspectiva sintetiza influências aristotélicas e neoplatônicas de modo original, fornecendo um arcabouço para questões teológicas cruciais: por exemplo, a diferença entre Criador e criatura não é meramente de grau, mas de ser; somente Deus existe por Si, ao passo que tudo mais existe a partir Dele.
Na teologia católica, as contribuições são igualmente profundas. A concepção de Deus como Ser subsistente reforça doutrinas como a da criação ex nihilo (já que as criaturas precisam receber o ser do Nada pelo poder divino) e a da dependência contínua da criação em relação a Deus (conservação).
Também esclarece atributos divinos: se Deus é o próprio Ser, Ele é a plenitude de todas as perfeições – “nada do ser pode faltar a Ele” (Summa Theologica), inclusive perfeições como vida, inteligência, bondade etc., que Nele se identificam em unidade simples.
Por outro lado, as criaturas, por terem o ser “emprestado”, manifestam de modo limitado as perfeições que em Deus existem de forma ilimitada.
Assim, toda bondade, verdade ou nobreza nos entes criados é um pálido reflexo participado do Ser divino, o Summum Bonum. Essa distância ontológica infinita entre Deus e a criatura, evidenciada pela diferença entre Ser por essência e ser por participação, protege a fé cristã de qualquer panteísmo: jamais uma criatura, por mais elevada, pode se equiparar a Deus em seu ato de ser. Ao mesmo tempo, embasa uma visão sacramental do mundo criado – este possui beleza, verdade e bondade autênticas na medida em que participa do Ser de Deus.
Em suma, a metafísica do esse fornece à teologia cristã uma linguagem para afirmar tanto a transcendência absoluta de Deus quanto a dependência radical e a participação das criaturas no Ser divino.
Referências nas Obras de Tomás e Fundamentação Aristotélica-Neoplatônica
Tomás de Aquino expõe essas ideias em diversas obras, sendo a mais direta o opúsculo De ente et essentia (Sobre o ente e a essência). Nessa obra, ele demonstra a distinção entre essência e esse desde os entes materiais até os entes separados (anjos) e, por fim, em Deus.No capítulo IV de De ente et essentia, o Doutor Angélico argumenta que mesmo substâncias espirituais (sem matéria) não se identificam com seu ser, pois sua essência é “aquilo que são” e seu esse (recebido de Deus) é “aquilo pelo qual são na realidade”.
Ele cita Boécio para referir-se a essa composição como de quo est e quod est, conforme já mencionado. Já na Suma Teológica, especialmente na Parte I, questão 3, artigo 4, Tomás declara que em Deus não há distinção entre essência e ser, e na questão 4, artigo 2 reforça que Deus, sendo ipsum esse per se subsistens, possui toda perfeição do ser (Summa Theologica).
Também na Suma Contra os Gentios (Livro I, caps. 22 e 23), ele sustenta que Deus é a única realidade cujo ser é Sua essência, ao passo que todas as outras têm ser por Ele. Em diversas Quaestiones Disputatae e comentários (por exemplo, no Comentário sobre as Sentenças e no De Potentia), Aquino retorna ao tema da participação no ser e da criação como concessão do esse. A coerência de suas posições ao longo dessas obras evidencia a centralidade do actus essendi em seu sistema.
Filosoficamente, Tomás de Aquino construiu essa doutrina alicerçando-se em tradições anteriores, sobretudo a aristotélica e a neoplatônica. Da metafísica de Aristóteles, ele herda a noção de ato e potência e a ideia de que a forma é o princípio que atualiza a matéria (resumida na frase forma dat esse – “a forma dá ser”).
O Doutor Angélico adotou esse princípio e o elevou a um plano mais fundamental, aplicando-o à relação entre essência e ser. Assim como para Aristóteles a matéria é potência em relação à forma, para Tomás a própria essência (mesmo já composta de forma e matéria, no caso dos seres materiais) é potência em relação ao esse, que é ato. Nesse sentido, Aquino universaliza o esquema ato-potência para além do físico, trazendo-o ao nível transcendental do ser.
Contudo, essa ampliação não teria sido possível sem as influências platônicas e neoplatônicas. A tradição neoplatônica (transmitida a Santo Tomás por autores como Pseudo-Dionísio Areopagita, Sto. Agostinho, Boécio e pensadores árabes como Avicena) enfatiza a derivação de todos os entes a partir de um Primeiro Princípio e o esquema de participação no Ser.
Tomás assimilou essas ideias de participação, de modo que o esse em seu pensamento ganha uma dimensão “plenamente atual” e ilimitada em Deus, mas “limitada” nas criaturas. Pseudo-Dionísio, por exemplo, chamara Deus de “Ser sobre-essencial” e afirmava que d’Ele emanava o ser de tudo que existe; Tomás reinterpreta isso dentro de uma estrutura cristã, vendo Deus como causa do ser de cada criatura em cada momento (Summa Theologica).
Também Avicena ensinara a distinção entre essência e ser nos contingentes, e Tomás aprofunda essa distinção unindo o rigor aristotélico (que faltava a Avicena em alguns aspectos) com a visão participacionista neoplatônica.
O resultado é uma síntese original: Aristóteles forneceu a lógica ato-potência e a valorização da forma, enquanto o Neoplatonismo inspirou a compreensão do esse como fundamento supremo e do Ser de Deus como fonte fontal de todo ser (Los significados del ser en S.Tomas-II. Aristoteles-P. Trollano).
Como resume um estudioso, Aquino desenvolve sua metafísica do ser sob a influência do axioma aristotélico forma dat esse, porém “purificado de todo limite categorial e elevado ao plano transcendental do esse como ato de todos os atos” graças à especulação neoplatônica que ele assumiu (idem).
Em outras palavras, Tomás integrou magistralmente a causalidade formal aristotélica (que explica o que algo é) com a causalidade do Ser neoplatônica (que explica que algo é), fundando assim a metafísica da participação no actus essendi.
Conclusão
O conceito de “esse ut actus essendi” – o ser como ato de ser – é fundamental para compreender a filosofia e teologia de Santo Tomás de Aquino. A distinção entre essência e esse permitiu ao santo explicar por que as coisas existem como existem e apontar para Deus como a Origem de todo ser.Essa distinção ressalta que tudo o que não é Deus possui uma existência recebida e contingente, ao passo que Deus é Subsistente e necessário em Seu ser. Na metafísica tomista, o esse é o vértice da atualidade, a perfeição que todas as essências aspiram participar, consolidando uma visão dinâmica e hierarquizada do real.
Na teologia cristã, essa visão reforça a distinção Criador-criatura e aprofunda o entendimento da onipotência divina e da dependência radical de todas as coisas em relação a Deus.
Em síntese, esse ut actus essendi não é apenas um conceito técnico, mas o coração da metafísica tomista – a verdade de que “ser” não é algo que os entes têm por conta própria, mas algo que recebem e que os constitui, vinculando-os Aquele que é o Ser por Si mesmo.
Como tal, permanece uma noção-chave que impactou profundamente o desenvolvimento da metafísica ocidental e da teologia, alicerçada na harmonização fecunda entre razão filosófica (Aristóteles e Platão) e fé cristã na compreensão do Ser.