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Segunda Via: Da causa eficiente à causa primeira


1. Enunciado da questão

Santo Tomás propõe esta prova na Summa Theologiae, I, q. 2, a. 3, como a segunda via para demonstrar a existência de Deus, fundada na noção de causa eficiente, isto é, aquilo que produz o ser de outro.

“Secunda via est ex ratione causae efficientis.”
(A segunda via é segundo a razão da causa eficiente.)


2. Esquema Lógico da Segunda Via

I. Premissas metafísicas

A segunda via se baseia em três princípios metafísicos fundamentais:

  1. Princípio de causalidade: Todo ente contingente (isto é, que não é necessário) exige uma causa eficiente para sua existência.
  2. Nada é causa eficiente de si mesmo: Pois isso implicaria que seria anterior a si mesmo, o que é absurdo.
  3. Impossibilidade de regressão infinita em causas eficientes per se: Uma série infinita privaria a atualidade causal, e nada existiria agora.
Anjos cantando; quadro de Jan Van Eyck.
O cantor é causa eficiente de sua própria voz, em um tipo de causalidade que chamamos per se ou essencial. Este tipo de causalidade é essencial à Segunda Via, conforme detalharmos mais adiante.

II. Etapas do argumento

1. Observação empírica

No mundo, encontramos uma ordem de causas eficientes.
(Invenimus enim in istis sensibilibus esse ordinem causarum efficientium.)

Exemplo: o fogo aquece o ferro, sendo, então, causa eficiente do calor no ferro. Assim, em todos os entes criados, vemos que têm causas que os produziram.

2. Nada é causa eficiente de si mesmo

Pois seria anterior a si mesmo, o que é impossível.
(Nulla res est causa efficiens sui ipsius: hoc enim esset esse priorem seipso, quod est impossibile.)

Todo ente criado recebeu o ser de outro; logo, não pode ser sua própria causa.

3. Impossibilidade de regressão infinita em causas eficientes per se

Se não houver uma primeira causa, não haverá causa intermediária, nem última.
(Non potest in causis efficientibus procedi in infinitum.)

Se cada causa fosse causada por outra, e assim infinitamente, nenhuma teria atualidade causal para produzir efeito. Logo, nada existiria — o que contradiz a experiência.

4. Necessidade de uma causa primeira

É necessário admitir uma causa eficiente primeira.
(Ergo est ponere aliquam causam efficientem primam.)


III. Conclusão

Esta causa primeira todos chamam Deus.
(Hanc omnes Deum nominant.)


3. Forma Silogística (estrutura racional)

  • Premissa maior: Toda coisa causada é causada por outra.
  • Premissa menor: Não é possível uma série infinita de causas eficientes.
  • Conclusão: Logo, deve haver uma causa primeira incausada — que é Deus.

4. Fundamentos metafísicos da prova

A. Distinção entre causas per se e per accidens

  • Causas subordinadas per accidens (ex: pai → filho → neto) podem continuar indefinidamente no tempo.
  • Causas subordinadas per se (ex: mão → bastão → pedra) formam uma série causal simultânea que exige uma causa primeira presente e atual.

A via da causalidade eficiente trata desta segunda — e é aí que a regressão infinita é absolutamente impossível.

B. Causa primeira como ser necessário

Se existe uma causa que não depende de outra, esta é:

  • Necessária em si mesma
  • Simples e subsistente
  • Ato puro, pois não depende de outra para existir nem agir

Esta causa é o ipsum esse per se subsistens, a fonte do ser de tudo o mais.


5. Conclusão teológica

Santo Tomás não identifica imediatamente esta causa com o Deus da Revelação, mas demonstra que deve haver:

  • Um ser não causado
  • Causa de todo o ser contingente
  • Necessário por si
  • Imutável, eterno, simples

E tais atributos pertencem exclusivamente ao que a tradição metafísica e a fé católica reconhecem como Deus.

Adendo: Da Causa per se (ou Unívoca)

I. Noção de Causa

Antes de abordar a distinção entre causa per se e per accidens, convém lembrar que a causa é aquilo de que algo depende para existir, mudar ou operar. 

Segundo Aristóteles e Santo Tomás, há quatro causas: material, formal, eficiente e final. Aqui tratamos da causa eficiente, ou seja, aquela que produz o ser de outro, que é princípio de geração ou de mudança (Summa Theologiae, I, q. 2, a. 3).


II. Definição de causa per se

A causa per se, ou também chamada causa unívoca, é aquela que produz o efeito por si mesma, isto é, em virtude de sua própria essência ou natureza, e não por acidente ou acaso. Ela está ordenada essencialmente ao efeito, de modo que, se ela não existisse, o efeito tampouco poderia existir.

Definição tomista:

Causa per se est illa quae producit effectum ex virtute sua propria, essentialiter ordinata ad talem effectum.


III. Diferença entre causa per se e causa per accidens

1. Causa per se:

  • Produz o efeito por sua própria essência.
  • Existe uma ordem essencial e necessária entre ela e o efeito.
  • O efeito depende diretamente da presença e operação atual da causa.
  • Exemplo: a mão move o bastão, que move a pedra — esta série é essencial (per se), pois se a mão não move, o bastão tampouco moverá.

2. Causa per accidens:

  • Produz o efeito não por si, mas por acidente, em virtude de algo contingente ou exterior.
  • O efeito não depende essencialmente da continuidade da causa.
  • Exemplo: o pai é causa do filho, mas o filho continua existindo mesmo após a morte do pai — não há atualidade da causa.

IV. Causa per se na série de causas subordinadas

Uma série per se de causas eficientes é aquela em que cada membro age instrumentalmente, dependendo da atualidade da causa superior:

Exemplo clássico:

  • A pedra se move porque é movida pelo bastão,
  • o bastão se move porque é movido pela mão,
  • a mão se move porque é movida pelo músculo,
  • o músculo se move porque é movido pela alma.

Nesta cadeia, se a causa superior cessar de agir, todas as inferiores também cessam. Por isso se diz que são ordenadas essencialmenteordinantur per se.


V. A causalidade per se e a impossibilidade do regresso ao infinito

Santo Tomás demonstra que não se pode prosseguir ao infinito nas causas per se, pois uma série infinita de causas instrumentais não teria causa primeira atual, e, portanto, nenhum efeito existiria agora.

“Non est procedere in infinitum in causis efficientibus per se ordinatis.”
(Summa Theologiae, I, q. 2, a. 3)

Logo, é necessário admitir uma causa primeira per se, que não seja causada por outra, e que seja causa incausada — o próprio Deus.


VI. A causa per se como causa unívoca

Em outro sentido, a causa per se é também chamada unívoca, especialmente quando produz um efeito da mesma espécie que ela mesma, como:

  • O fogo que aquece outro corpo: causa unívoca (quanto ao calor).

Mas Deus é causa analógica, não unívoca: Ele é causa do ser enquanto ser, mas não do mesmo modo que as criaturas.

“Deus non est causa univoca entis, sed analogice.” (De Veritate, q. 21, a. 4)

Portanto, em Deus a causalidade é per se, necessária, mas analógica, pois Ele é ser por essência, e as criaturas, ser por participação.


VII. Conclusão

A causa per se:

  • É aquela que age por sua essência própria,
  • Estabelece uma relação de dependência essencial e atual com o efeito,
  • Não admite regressão infinita na série causal,
  • Implica a existência de uma causa primeira incausada, que é Deus.

Esta noção é fundamental na metafísica tomista, pois nos permite distinguir a dependência essencial do ser criado e conduzir à necessidade de um ser que não depende de outro — o actus purus.

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